Peregrina

I.

a ondulação de uma voz

fácil se insinua

se infiltra

em um sonho

 

e germina uma semente

de clarividência

em qualquer domínio

que a vigília não

acessa

 

vira fluxo que de lua em lua

se torna

um rio torto

 

II.

colho nos seus cílios

a água da chuva as palavras

que teço

 

dos seus dentes

meu verso minha língua

são amigos de outras vidas

 

III.

beijar a extensão

das suas costas

até sua nuca seus ombros cabelos

 

antes que o mundo acabe

antes que o deserto vire mar

 

IV.

te amar até que esse amor

seja sacudido de mim

como frutas e flores frouxas

são sacudidas de um galho

como as palavras

são sacudidas de seu significado

até que um dia

eu não te reconheça na rua

inventário

você
tem um talento muito particular
de colocar muito açúcar
na xícara de café
e matar plantas –
suas queridas gérberas vermelhas e lírios laranjas

você tem uma inconfundível tendência, inclusive
a amar mais vasos de plantas abajures
dentre outros seres inanimados
do que ama
uma boa parte do planeta

e aquele costume
de largar o sutiã em todas as maçanetas da casa
e de pintar as unhas dos pés em cima da cama
e manchar os lençóis de vinho

você, inclusive,
tem aquele talento engraçado
de mudar da água pro vinho
de ser a boca mais suja do bar
e profetizar seu próprio futuro
depois de três cachaças
esquecer como se faz puro teatro
e fazer seu coração em mil pedaços
que você vai largando pelo asfalto
no caminho pra casa

você se apega a coisas decrépitas
por exemplo, o sofá rasgado no quintal
coberto de folhas da árvore do vizinho
em que você insistia
em catar poemas curar a ressaca
acordar na manhã seguinte
com os olhos baços

você quebra xícaras e
vai recolhendo os cacos
em parcelas

você diz
que minha visão está turva
que eu minto
(minha versão de você)

você também rabisca um poema
na entrada
e na saída
como quem acena
sai à francesa
de uma vida inteira

uma vida inteira
eu viveria ao seu lado
mas
não esta

Sábado

a árvore chove folhas
uma, como uma gota, espera

(enquanto eu estiver à espreita
seus olhos não me procurarão)

a própria brisa, ocasionalmente
procura a janela
no interior da casa

nos quintais urbanos começam
as constelações a brilhar fracas

(que falta faz
uma janela com uma árvore)

ontem ainda eu decidi que ia mudar
a trama mas hoje passeio
sem meus próprios passos
sou só pés e sapatos
a cabeça leve demais

hoje a correnteza de folhas
me carrega pela calçada

nenhuma alma viva na rua
são umas três agora
lembra do que te disse?

que as pessoas todas se escondem por essas horas
preparando sabe-se lá o quê

é da brisa da janela que vem a ventania
bem-vinda

(eu me pergunto se ainda hoje atravesso a rua
antes que venha o seu cheiro de chuva)

avesso do azul

um passeio pelas nuvens
ignorando os sinais de que
a aura já poderia
ter se dissolvido há muito

e depois não soube mais onde procurar
em cada azul moribundo de
cada fim de dia
o mundo do avesso
o coração a tudo
obtuso

a vida torna-se clara a ponto de
tornar-se transparente, o coração vivo
pulsando na mão,
condenado
sente estar há alguns últimos minutos do abraço
da sombra
mas se resigna como
uma fruta no chão

Lua em Escorpião

eu desfaço o rito
no calor espontâneo
de um abraço inteiro
é da maior importância
que você saiba
o avesso da minha espera, o perfume
com a deliberação de um veneno

eu desfaço o rito
que por horas
submersas, quero
acredito
faz com que seja mim
essa outra que flutua
pela sombra de quem sabe
eu desfaço o rito e retomo o verso
suspendo o instante
e vou desenrolando
lentamente o novelo
que me conduz
ao extremo do labirinto

eu me perco e assisto
tudo como num filme
me pinto para uma batalha
me escondo atrás do movimento sinuoso
para no fim sua mão me achar no escuro
e levar o que eu tinha de fôlego
acaba sendo assim
como estar nua, dona
de cabelos e ombros que se sobressaem
mas dissolvendo em todo o resto
assim como estar nua
ou nunca nua
e sempre procurando as mãos no escuro

eu aguardo
sei guardar coisas como ninguém
como uma tesoura
pra cortar a corda e
te fazer segurar firme no seu
fôlego
sei como ninguém
cortejar abismos
e acho que algo da tua aura se transmite
e eu visto, como um tecido
sou puxada da gravidade lunar e piso o chão
com o apuro que empresto de você

acho dentro de mim meu próprio poder
quando algo da sombra que você tem nos olhos
descola e me leva dançando
pelas constelações abismos ruas vazias
e de tudo que é por sua natureza inconfessável
nascem as flores o riso as tempestades
a alma de tudo se mostra
de modo
irremediável

Helena

Seu nome diz: a reluzente
Mas você sabe do seu trabalho de mariposa
Pelas noites

Levar flor no cabelo nem sempre atrai beija-flor, Helena
Nem sempre carregar dentro de si algum tipo de luz
Torna-te familiar a todas as luminescências

Nem sempre carregar o amarelo ilumina o rosto
Por dentro pode você muito bem ser uma flor seca
Uma flor de morte, Helena

Porque assim, Helena, porque insiste na sombra?
Não seria melhor se aprendesse qualquer coisa,
A lançar flechas, cavalgar, seduzir,
Escrever versos, administrar veneno?

Se insiste você que o mundo acaba e termina no amor,
então você anda em círculos, Helena…
E tua garganta foi interceptada por outrem.
Pega-a de volta.
Grita.

o que fica

sei que fiz coisas imperdoáveis
nos últimos anos

enumero:
ignorei avisos da intuição
calei
preferi não estar presente
deixei tantas me escaparem das mãos
fingi (tantas e tantas e tantas vezes) que
não era comigo

calei por mais vezes que consigo contar
fugi dos fulgores
me deixei emaranhar em carmas que já nem eram mais meus
contei as luas cheias nos dedos
sem nenhuma comoção

sei que fiz coisas imperdoáveis
abafei a chama
perdi a vocação
pra flecha
deixei de escrever poemas
que perdi para sempre no trajeto
entre a cama e o cotidiano
entre a praça e o prédio
entre o instante e o lápis

sei que fiz coisas imperdoáveis
mas gosto de pensar que há o que seja incurável
talvez a mania de ver luz em todos os cantos
essa insistência
no grito
essa ligeireza que só uma palavra no susto expressa
as flores que durante todos esses anos cresceram em pulmões e artérias
gosto de pensar que certas coisas são incuráveis

Autopsicografia

eu tento gargalhar
assim:
gargalhar
de tudo isso
e cuspir pérolas e andar
como se andasse em nuvens
de areia
como se visse tudo
do paraíso

eu tento desenrolar longas correntes de palavras
e ser sintaxe pura sintaxe
tento colar nas paredes gritos
como se fossem cartazes
e tento gritar
como os cartazes gritam
e quando saio de casa
nada da casa vem comigo

e quando observo os pássaros
é pra lembrar
como eles lembram aquele depois
aquele mar
que é mais que depois
porque nunca chega
e essa é sua beleza
e seu eterno

Mulher

me chamaram bruxa
quiseram me caçar
me chamaram objeto estético
quiseram me admirar
me chamaram donzela
quiseram me limitar
me chamaram demônio
quiseram me desprezar
apesar de poeta
me chamaram musa
como quem mostra
meu único lugar
me chamaram tudo
mas ri
não sou teoria
daqueles que acham
que de mim sabem
não sou verso
daqueles que recorrem
à adulação barata
acima de tudo
não caibo em caixas
favor não insistir

Mancha

fui dormir
com uma cor que flutuava
no pensamento
acordei
e ao longo do dia
derramei a cor na xícara do café que bebi
nos livros que abri
nos objetos que peguei
até que a cor ficou um pouco minha.
mas era minha?
a noite de sono a diluiu
e o dia a trabalhou:
não era mais a cor da maçã
que deixei na mesa de casa
não era mais a cor dos olhos do meu gato
que me olhou antes de sair
mas disso eu não podia mais saber
ao certo
porque já tinha perdido os rastros
e ela podia ser o que fosse
inclusive –
podia ser nada mais
que uma cor.