Metrô

A menina vai
A cidade que ruge
Se pendura em sua saia
A menina vai
Com pressa, mas não a mesma pressa
De quem sobe apressado a escada
Pra ver se pega o metrô que acabou de chegar

A menina vai
A cidade lhe vai pelos olhos
Ela vai com pressa
Mas não é pressa de atraso
É pressa de quem quer chegar a tempo
De pular pro outro lado do precipício
De mãos dadas com alguém

A menina vai
E a cidade se pendura
Em sua saia
Cor de uva
O metrô chega

Caminho

vim derramando pelo chão
dali até aqui
incontáveis contas
pérolas
que arranquei com a mão

vim dali até aqui, antes de tudo
e não sei se importa como
mas vim
o que importa é que cruzei no susto
a ponte
as luzes
tudo

vim derramando pelo chão
daqui até ali
um líquido transparente
de fogo
que me põe perdida
a andar sobre a terra oca
a navegar

e que transfusão é essa
transfiguração quem sabe
que figura é essa
eu
colar ou conta
espelho
ou sombra
fogueira
ou onda

Memória fotográfica

Faço o que for mas não me esqueço.
Ato chãos de cimento a margaridas
Escrevo na palma das mãos e nas orelhas

Recolho versos perdidos em portas de banheiro
Fixo matizes vermelho-amareladas
No tempo-espaço:

Até que deixo de ver sentido em tanto esforço
E deixo as coisas irem colando-se aleatórias,
mosaicas,
prosaicas
No ladrilho da memória

Três da tarde

São altas horas da tarde
Absurdas horas da manhã
Os gatos dormem
Aninhados no tempo-espaço
Na confusão de lençóis velhos
No chão gelado
Dos parques públicos

Só que tenho olhos humanos
E diante deles se desvelam
Mil impossibilidades serenas
Mil torres silenciosas que se calam

A tarde é um dorso que se contorce
Um rosto que nunca se vira
Os cenários se desdobram
E não sinto nenhuma dor

Geografia

Sei que você não falha em perceber:
todas as terras se parecem.
Todo o relevo, montanhas, planícies,
depressões,
construções,
falam àquela mesma dor
àquele mesmo sopro
que desde sempre conhecemos.

Pelas veias azuis dos rios corremos olhares
que devoram
anseiam
sentido qualquer
que preceda a morte;
com essa delicadeza extraterrena
que tiramos sabe-se lá de onde
contornamos, com a ponta do dedo,
a veia, o rio –
todos deságuam no mesmo lugar:
O oceano, a mão
aberta ou fechada que beijamos.

Há os monumentos, construções cheias de si, os grandes prédios:
as claríssimas coisas que nos observam.
A essas nos entregamos, em desaviso,
em pura ousadia, talvez,
como quem se abandona nos braços de
uma esfinge.
E não nos arrependemos mesmo
quando somos devorados.

Já as pequenas florestas, mesmos os bosques e campos
tememos:
A elas você e eu vamos apenas de mãos dadas,
Olhando para os lados,
como se a qualquer momento um terrível castigo
sobre nós fosse abater-se.
Mas no fim, amor, não nego o quanto pertenço
a essas clareiras, penumbras e blecautes.
Nem que me escondo aqui quando
nada mais me interessa:
tudo parece gravitar para este centro.

Há a terra enfim,
de norte a sul,
à qual tanto nos ligamos
que depois de um tempo nossos cabelos
se misturam às raízes das árvores.
Então nos lembramos das visões que um dia tivemos:
E não queremos nada além desse abandono feliz.

Noturno número um

Com mão invisível,
Você me livra de
fechos e laços

O céu ainda não decidiu
engolir todo mundo no breu.
A terra das estrelas
é remota ainda

(A lua ainda orquestra as marés)

E nós somos ainda pequenos,
desde o começo de tudo.
Nada se agita na superfície:

Dormimos em paz
nos lençóis, não nas ondas
Sorrimos com ignorância fingida.

Sabemos, mas ainda há flores.
Nada se agita na superfície.

Ressaca

Precipita-se
Sobre si mesmo:

Me ensina a não ter fim
E mesmo assim
Caber numa garrafa

Sangramento

Já não há mais o que me fira.

(Alguns animais têm patas pequenas
Mas certeiras
Todas as entranhas
De um só golpe
Na calada
Da noite)

Já não há mais o que me fira.
Este mundo
Sem medo
Ainda não faz
Sentido

Aceno

foi você quem me fez
repleta de imagens
azuis
que passo de mão em mão
como fotografias de um passado
precocemente envelhecido
costurado
às visões cotidianas
ao diário das fugas
a tudo que pretendia
da vida

é você quem me dá a mão
o braço a torcer
os olhos revoltos
em ocasiões estratégicas.
é você quem declara
a conta-gotas
suas intenções
é você quem me oferece seu nada
seu silêncio
as costas serenamente viradas

é você quem se oferece a caber em meus espaços vazios
quem abre minha concha silenciosa
mas nunca diz
uma palavra

não me alcança nunca:
é o que te peço
apenas

Abismo #2

(não escreva
poemas
de amor.)
acabe-se
em lágrimas
sem qualquer pudor
aos pés do oceano
que em cadência
de ti foge
e faça o seguinte:
(não escreva
poemas
eróticos.)
cavalgue
feito amazona

sele o cavalo
cale-se
limpe a boca
suja
de sal
de palavrões
falar não ajuda:
fuja
(não escreva
poemas
quaisquer.)
este buraco negro
diante do qual encontra-se
abismada
não é reversível
nem por feitiço
nem por palavra
nem por lágrima
mesmo